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28 de junho de 2012

Memória intocada

As grandes pequenas roupas que marcaram a infância foram a jardineira jeans com letras coloridas do alfabeto e o vestidinho branco abaixo do joelho, estampado com várias vaquinhas. Na jardineira, apenas as três primeiras letras; no vestido, somente o cheiro de novo (que parecia não sair nunca) incomodava.

Algum comportamento inadequado, alguma curiosidade e alguma outra traquinagem que preferiam não comentar. A patinar na rua esburacada, a escrever para pessoas queridas. A viagem para ver a família, o pai e os irmãos-não-irmãos. O caos, a alegria que não se diz. A memória que não se apresenta na linha do tempo: a infância que não se distingue da adolescência, que não se assemelha ou aproxima da puberdade. Abismos entre a lembrança de uma história e outra. Em algum lugar, a memória concreta guarda essa tal infância intocada. Com motivos não ditos, hoje, não fatos.

Personagens que não se vê, eles se narram entre um silêncio e outro do cenário que aprisiona o viver da época da jardineira e do vestidinho mal cheiroso com estampas de vaquinhas. O tempo que passou, as botinhas marrons substituíram as sandálias de plástico, sandálias que nunca deram espaço a um bamba. Um dia, o plástico voltou aos pés, se confundindo no tempo de hoje pelo passado: em confusão.


24 de junho de 2012

Esta loucura é o resultado, o amontoado, o vômito, a resposta para cada linha lida ao longo da vida. Reflexo, de cada imagem já vista, de cada apreciação ou rejeição acometida ao ser. Os amores e as ilusões que dançam no imaginário salgado do ser, afogado ou simplesmente imerso ali, naquele lugar. Falando pra dentro, chorando pra dentro, rindo da vida que a memória deixa intocada. A própria história que se esconde, a desculpa para o hoje que tem.


19 de junho de 2012

Guardei debaixo de sua asa meu pensamento, e vi voar. Segurei nas palmas meu coração saltando da boca sem querer e sem recear. Imaginei a luz, e a luz veio. Quis que fosse assim para dizer enfim que te vi sorrir de amor. Aprendi a cuidar sem redoma, provar da dor sem gritar, deixar para lágrima não o agravo, mas a liberdade de sangrar. E com o curso completo e aperfeiçoado, a cadente estrela passou e fez do existir o mais belo ato.

18 de junho de 2012

De querer ver

proliferar o riso!

Do pássaro que voa sobre a sua cabeça, a brincadeira de ser liberdade e erva, que fincada na terra, forma um lindo campo de se deitar os olhos. A audácia de perguntar das cores só para sentir nas palavras dos outros a sensação de estar em outro corpo, e ver além, e sorrir.


Lá fora os sonhos, que de forma ou outra se fazem seus. Saudação à uma nova miragem que se ocupa: a vida não morre, a vida vibra em brilho e cores que imagina com as palavras.

E diz, por querer ver proliferar o riso. E ouve, sonhando ver proliferar o riso.

6 de junho de 2012

The Last La-La

Enquanto a gota quente escorre, os olhos dóceis que me olham e veem aqui a esperança que sozinha eu nunca tive. O orgulho e a gana de vencer que nunca foram meus. Eles comemoram minha chegada. Nem ligo que cheguei. Cheguei? Concordo, mas não percebo.

Últimos quatro anos que um computador registra; as últimas bilhares de lágrimas que o colchão guardou, estas páginas e os cadernos na estante da sala. São a resposta de tudo. Tão estranho, e tão confuso. A memória brinca sem se mostrar. E a certeza é que muitas coisas novas me ocupam, mas nada deixei. Vez ou outra os pensamentos brigam, mas todos ficam, dentro ou fora do lugar.

Tanta imagem, tanta sensação conhecida que, na verdade, não entendo. Tenho apenas The Last La-La dançando em cada veia que pulsa, digamos que "insistentemente". O quarto em mar. Revoltas, as ondas batem.

4 de junho de 2012

Palavra

"E de tanto cismar sozinho a noite", rasgou mais um dos véus: do breu. Cantou pelos poros cada verso, ocupando o espaço e contaminando todo o resto com o que a noite de vento brando deixou chegar.

No espelho, cada gesto gritava um canto de quem quer viver, de quem quer amar. Em cada coro, um novo modo, um novo jeito, um novo novo. Início. E o caminho todo limpo, e a roupa toda limpa, toda linha alinha para um novo verso. 

De saber calar quando preciso, de poder gritar em improviso. Palavras que tornaram a alma liberta.

3 de junho de 2012

ESTANCAR, 1ª PESSOA

Eu queria ter palavras toscas para responder aos estímulos do mundo, ser tomada de uma superficialidade desumana, como alguém qualquer que a usa com facilidade. Queria talvez ser apenas mais um. Mais um que anda pelas ruas, entregando sua força de trabalho para ter o que comer enquanto assiste filme ou vê o jogo na televisão de plasma parcela em 24 vezes. Bom seria não me importar tanto com os números, ser aquela que não relaciona os mortos do centro da cidade com a favela interior de cada um de meus amigos. Queria não ter palavra, ser muda de vontade, ser muda de opinião, ser só um ovo (não aceito cru, quebrado e levado ao fogo para que, de uma coisa fedida, tornasse um alimento para qualquer outro bicho). Queria ser aquele que traga qualquer coisa, vomita e depois parte para o outro prato (sem pressa e sem lembrar que o relógio segue em seus segundos infernais). Queria um remédio, ser digna de uma alegria alucinógena que hoje não me chega, um plano novo. Um universo que não este. Um mundo em que deus é visto na grama e nas árvores. Um lugar sem placas e sem pessoas que cobrem ou leiam tais linhas, longe de cada pedaço que me habita e me faz sentir o último dos que tentaram algo melhor. Talvez, se as veias fossem um pouco mais grossas, a dor eu estancaria com uma ponta fina de aço que deixei na gaveta.

Um todo sem abraço

Todo canto dessa brisa
bate e vai
Carrega o visgo
sonhos meus.

Toda forma de canto
soa e se desfaz
Bate lataria no quintal
silencia imortal.

Toda certeza brinca
pulando onda
Sem onda é
correnteza que tudo leva.

Toda sede reina
espera finda
Chorosa brilha só
é noite de lua cheia.


1 de junho de 2012

Brincando de dizer o inverso

É noite de chuva, chuvinha. Sabe, aquela chuva fraca que te embala e faz tudo ficar tão calmo? É assim essa noite. Quentinha debaixo da coberta, nem importa o gato que mia lá fora de frio; não se lembra dos não-moradores, seus vizinhos. É a chuvinha calma que deixa até, até, até as palavras saírem mais devagar. E é tão quentinho embaixo da conversa, a mente leve que as gotas do céu tocam. Gotinhas que acalmam. Falando, parece tudo tão bonito e sereno. A noite é quase doce nessas linhas de ironia. Risíveis linhas inversas.